Sua vida dava um livro

Mais um tempo se passou, e eu ouço de novo algo bem parecido com "sua vida dava um bom filme!" e é claro que se um livro já me soava um enorme exagero, o que dizer de um filme? Bom, eu cai na gargalhada, tomei como elogio o comentário e segui a vida.

Camila Scrivano

5/15/20246 min ler

Desde cedo, aprendi que o certo mesmo é ter um emprego daqueles tradicionais, de segunda à sexta, das nove às seis. Aquele tipo de trabalho que paga as contas no final do mês. Desses para os quais devemos nos dedicar, de modo que se ficarmos mesmo muito bons, em algum momento seremos reconhecidos e que, de preferência, deixe mais salário do que mês no final das contas.

Como aprendi isso? Como a maioria das coisas que a gente carrega para a vida, eu aprendi isso com meus pais.

Meu pai, um homem muito fiel a si mesmo, procurou sempre ir atrás do que faz sentido para ele, mesmo quando a visão dele era bem peculiar e pouco compartilhada pelas pessoas ao redor. Embora sua formação técnica fosse na área da Química, seu coração sempre pertenceu ao estudo das relações humanas. Por isso, ainda na década de oitenta, ele largou o emprego dele para empreender. Mexeu com turismo, mas o que realmente ele levou adiante foi o desenvolvimento humano, que é o que ele faz até hoje, com oitenta anos. Quebrou a cara um milhão de vezes, foi descreditado, teve que se reinventar, e já fez das coisas mais diversas para garantir o seu pão.

Minha mãe, uma mulher que cresceu vendo a sua mãe carregar nas costas uma família no aspecto emocional e estrutural, contava sempre histórias de muita luta mas muita garra sobre a minha avó. Ela me dizia que minha avó era forte, e que sempre cuidava de tudo. Sobre meu avô, falava pouco. Não parecia ter mágoas, mas não sei quantas boas histórias ela tinha para contar sobre ele. Ainda jovem, foi trabalhar num grande museu na cidade do Rio de Janeiro, mas independente do seu esforço, o governo na época atrasava pagamentos, e complicava demais a sobrevivência. Por isso, foi em busca de novas oportunidades, e acabou caindo no turismo. E foi com muito esforço, nos moldes tradicionais, que fez com que ela, no seu último dia de trabalho antes da aposentadoria, fosse aplaudida de pé por todos os colegas da empresa, desde de os sócios até a senhorinha do café.

Quando eu era criança, ouvia as pessoas olharem para o meu pai com desconfiança. Em parte porque o tipo de trabalho que ele fazia era incomum. Mas em parte também porque desafiava aquilo que as pessoas ao redor acreditavam ser correto. E quando digo "pessoas", me refiro não só à minha mãe, mas também aos pais dos colegas e amigos meus e das minhas irmãs. Era raro que alguém verbalizasse isso, mas meu pai sempre foi, nesse aspecto, o clássico exemplo do profeta que, em casa, não tinha honra.

Cresci, portanto, acreditando que esse negócio de empreender, de seguir a sua própria trilha, era coisa de seres extraordinários, quase sobrenaturais. Gente como a gente (embora ninguém dissesse isso em alta voz) deveria mesmo era tomar vergonha na cara e procurar emprego. E aprender a se adaptar, se adequar, e a ser leal ao seu empregador acima de tudo.

Para ajudar a reforçar essa crença, em dada altura, a minha mãe decidiu empreender. Quis abrir com dois colegas uma agência de viagens própria, que obviamente quebrou. "Como assim, obviamente, Camila?" você pode me perguntar... e eu explico: todo empreendedor quebra, se lasca, passa maus bocados, se reinventa e só dá certo se tentar de novo. Ou seja, quebrar na primeira tentativa é quase uma certeza.

Para quem não acredita no que afirmei, é fácil tirar as suas próprias conclusões: basta pesquisar a vida de grandes empresários e empreendedores para ver que, tirando da equação os herdeiros (que também correm o risco de levar uma empresa à bancarrota só porque não tem ideia de como fazer a roda continuar a girar), a esmagadora maioria desses homens e mulheres de sucesso não começaram no topo do ranking. E mesmo os que começaram, caíram de lá e tiveram que lutar para voltar a uma posição mais alta novamente.

Hoje eu sei disso, e hoje eu tenho o entendimento de que tudo aquilo que meu pai viveu era absolutamente normal e esperado para o caminho que ele trilhou. Diferente do que eu ouvia, ele era sim um sonhador, mas não um irresponsável. A melhor definição para ele seria inconformado: ele não aceitou entrar na fôrma (con+formar-se) do que os outros queriam para ele, e seguiu firme em direção ao que ele acreditava.

"Mas, Camila, por que você está pensando nisso agora?"

Pois é, ontem fez dois anos que minha mãe faleceu. Dois anos em que eu ainda procuro entender como é exatamente viver órfã, mesmo sendo adulta. Dois anos de celebração da vida dela, e de tudo o que ela deixou de bom: valores, princípios, fé e muita história para contar.

Nesse tempo, de todas as histórias que eu e as pessoas que conviveram com minha mãe podem contar sobre ela, nenhuma é relacionada ao trabalho que ela fazia. Nem mesmo os amigos que compraram viagens com ela, e conheceram lugares paradisíacos, mencionam essas experiências para falar da minha mãe. Contam sempre sobre seu caráter firme e sua fé, falam da sua visão de águia, do quanto era generosa e incansável em ajudar a quem podia (e a quem não podia). Mas nada sobre como o trabalho dela mudou alguma coisa. E olha que mudou coisa pra caramba naquele cenário brasileiro pré e pós diretas já.

Em compensação, nas raras oportunidades que tenho de interagir com pessoas que convivem com meu pai (fora da família), o que mais ouço é o quanto o seu trabalho mudou suas vidas. O seu espírito inovativo para resolução de problemas simples, e a sua forma sempre fora do quadrado de encarar desafios de gestão e de relacionamentos humanos é a sua marca.

E eu, onde me encontro nisso?

Há algum tempo, venho questionando não tanto as escolhas que fiz no passado, mas os rumos que preciso seguir para o futuro. O que me trouxe até aqui foi importante, e eu sou grata por cada uma das experiências que passei. Pelas boas e pelas péssimas. Mas, o que é que vai me levar adiante?

Durante a pandemia, entendi de vez que esse negócio de trabalhar para os outros tem o seu valor, mas como diz o poeta: é eterno enquanto dura. Aliás, corrijo-me: às vezes nem enquanto dura é eterno... somos números, peças de reposição, ou como o mercado corporativo gosta de chamar (que me dá nojo), somos recursos. O nosso valor é similar ao de uma cadeira, um computador, um telefone, uma coisa qualquer dessas. Enquanto funciona, bem. Quando quebra, às vezes vale tentar consertar; muitas vezes, melhor mesmo substituir por outro mais novo.

Inclusive, basta fazer o teste: o que acontece quando você se ausenta do trabalho? A empresa com certeza não pára. Se você tem uma função que é muito exclusiva e que tem algum nível de especialização, haverá perturbação no fluxo do trabalho, mas certamente alguém vai substituir o recurso usual (você) por um outro (provisório ou definitivo).

Por isso, no ano passado, decidi que ia finalmente seguir os passos do meu pai. Assumir as rédeas do meu destino, e principalmente, aquilo com o qual eu posso oferecer mais contribuição para quem caminha do meu lado. Encarei de frente a escrita, e desde aquele momento, já lancei alguns livros. Todos best-sellers.

Por que isso é importante? Porque abraçar aquilo que faz sentido para mim é o caminho para cumprir o meu propósito. E fazer o dinheiro necessário para a nossa família, mas para alcançar e apoiar a todos os que possam ser beneficiados e apoiados com esses recursos (esses sim, chamados corretamente).

Escrever não tem a ver com talento, com dom, com iluminação divina, ou com qualquer outra coisa que pareça mágica ou exclusiva a seres superiores. Escrever tem a ver com ter a certeza de que, quando eu já não estiver mais aqui, eu ainda estarei. Minha vida não será em vão. O que vivi, o que aprendi, o que chorei, o que sorri... tudo isso vai ficar. Não para que as pessoas me celebrem, mas para que elas possam encurtar caminho, e chegar mais rápido ao ponto de satisfação que eu cheguei quando parei de me dar desculpas, e encarei a escrita como ela deve ser encarada: um ofício, um canal para abençoar a outros, a mim mesma, e a você, que chegou até aqui.

Sim, é com você que estou falando. Finalmente deixei de lado as minhas crenças limitantes, procurei o método que precisava, assumi riscos, botei a mão na massa, e estou no caminho de chegar onde preciso: deixar o meu legado no mundo. E você, já começou a preparar o seu?